Crítica: ‘Ficção Americana' e a sátira rasa aos estereótipos da literatura negra
- Rangel Diniz
- 9 de mar. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 10 de mar. de 2024
A obra recebeu indicações nas categorias: Melhor Filme, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Ator para Jeffrey Wright, Melhor Ator Coadjuvante para Sterling K. Brown e Melhor Trilha Sonora
Com o estreante Cord Jefferson na direção, “Ficção Americana” é uma das surpresas que completam o quebra-cabeça – de dez peças – dos indicados ao Oscar de Melhor Filme em 2024. A obra recebeu indicações em cinco categorias, incluindo Melhor Filme, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Ator para Jeffrey Wright, Melhor Ator Coadjuvante para Sterling K. Brown e Melhor Trilha Sonora.
O foco do longa está em Thelonious "Monk" Ellison, interpretado por Jeffrey Wright (de "Batman"), um autor de romances negro que vive uma crise de identidade em sua escrita após ser confrontado pelos seus editores sobre a falta de "afro-americanidade" em seus livros. Suas obras não emplacavam bons números por serem “diferentes” e o protagonista acabara de ter uma produção recusada, mesmo com a ajuda de seu agente Arthur (John Ortiz).
Desafiado por essa crítica, Monk adota um pseudônimo e decide escrever um romance baseado nos estereótipos que cercam a identidade afro-americana, em outras palavras, tudo que o protagonista detesta. A intenção na escrita era chocar os editores com todos os clichês possíveis.
No entanto, para sua própria surpresa, o livro alcança enorme sucesso e repercussão, e acaba sendo lançado em um momento que Monk enfrenta consequências de suas ações na vida pessoal, principalmente nos relacionamentos com sua namorada, Coraline (Erika Alexander, de "Corra!"), seu irmão, Cliff (Sterling K Brown, de "Pantera Negra") e sua mãe, Agnes (Leslie Uggams, de “Deadpool”) diagnosticada com Alzheimer após a morte da irmã de Monk, Lisa (Tracee Ellis Ross, de “histórias de orgulho”).
A quantidade de personagens inseridos não corresponde a atenção do filme para cada um deles. Como exemplo, o longa possui pelo menos cinco mulheres seguras e com posicionamentos relevantes quanto a trama do filme, claramente possuindo um background interessante. No entanto, não nos é concedida a oportunidade de conhecê-las melhor, de acompanhar suas vidas, de entender seus anseios e suas narrativas. Elas acabam servindo apenas de colunas para dar suporte ao arco dramático de Monk. O filme não tem nenhuma fala feminina igual ou superior a 60 segundos.
No mesmo sentido, também temos Cliff, irmão de Monk. O que existe de informação inicial sobre ele é que a esposa pede separação após flagrá-lo na cama com outro homem. Cliff então se encontra em um luto (pela irmã) e, ao mesmo tempo, se sente livre para poder ser quem é. Depois disso, assistimos a um desenvolvimento raso e clichê da vida do personagem, o qual se relaciona diretamente com as narrativas de outros personagens masculinos hollywoodianos marcadas por: drogas ilícitas, pouca roupa e homens jovens aparecendo de surpresa em casas de desconhecidos. Ainda assim, diante das mulheres da trama, o arco de Cliff é melhor montado.
Dessa forma, o filme trabalha a sátira principal acerca dos estereótipos da literatura afro-americana e o drama secundário na vida do personagem. A atuação de Jeffrey é um dos pontos mais fortes do filme, chegando a “salvar” alguns trechos do roteiro. Monk é um personagem sempre irritado, grosseiro com seu irmão e namorada em alguns momentos, mas que sempre diz que está assim “apenas nos últimos dias”.
Destacando a forma que os americanos observam e incorporam a cultura negra, principalmente na literatura, o longa carrega uma premissa intrigante, que funciona bem em boa parte do filme, em especial na segunda metade, quando foca em criticar o liberalismo literário e o poder hegemônico branco sobre escritores negros e suas produções. Contudo, dentro de uma discussão pouco original, espera-se maior profundidade.
“Literatura branca me ensinando a ser preto” é uma frase utilizada em uma das edições do projeto musical “Favela Vive”, no trecho cantado por César MC. No filme, essa ideia fica muito evidente na busca constante dos editores brancos em apropriar-se do sofrimento do povo negro para conseguir números e vendas através de narrativas construídas por eles.
Mesmo com pouca força em algumas sacadas satíricas, a obra consegue manter o espectador envolvido ao longo do tempo de duração da projeção com boas atuações e um drama que funciona bem, convidando ao pensamento crítico e ao diálogo.
O drama satírico possui claras limitações e até mesmo contradições, ainda que consiga levantar questões importantes sobre identidade e cultura. Na proporção que faz críticas certeiras em relação ao domínio branco no campo da escrita, tem erros grotescos capazes de diminuir costumes, sobretudo nas relações sociais e na arte.
O protagonista, em boa parte do longa, não parece buscar diversidade na escrita para que negros escrevam o que quiserem, como desenha a premissa do filme, mas sim proibir e ocultar a escrita sobre vivências que podem, sim, ser reais. Nos minutos finais, o roteiro até tenta contornar essa questão, mas falha na profundidade e na construção durante a montagem de suas ideias no decorrer da obra.
Em pelo menos três diálogos, Monk fala sobre os estereótipos da escrita afro-americana, colocando elementos culturais como as gírias, o funk, o rap e as danças em potes equivalentes à repressão policial, à escravidão e à serventia ao povo branco, quando os primeiros, na verdade, também falam de emancipação, resistência e quebra de hegemonia.
Uma característica que chega a ser cômica é a forma que o filme repercutiu nesse curto período de tempo no Brasil. Os eleitores de diferentes vieses do país – nas redes sociais – têm adaptado sua interpretação do filme para o que mais lhe agrada. Um lado diz que o filme é progressista e busca equidade. O outro, diz que o filme critica uma suposta “lacração”, como é citado por estes.
Sobre esse fenômeno da recepção inicial das ideias, uma fala do protagonista pode explicar – sem entrar em spoilers: “Não tem moral, essa é a ideia. Eu gosto da ambiguidade”. Talvez, a ambiguidade não esteja presente na interpretação, mas em algumas lacunas deixadas pelo filme na construção da sátira e de sua linha de pensamento.
No fim, um bom filme, que se mostrou promissor, mas que não chegou ao nível de seus concorrentes. Talvez tenha faltado um pouco mais de coragem e acidez na boa discussão proposta. A quantidade de histórias no filme também não se adaptou ao tempo de tela, deixando importantes narrativas como citações ou discursos rasos.
Comments