‘Um por amor, dois por dinheiro’: entre o Underground e o pseudo Mainstream do Rap Nacional
- Rangel Diniz
- 6 de nov. de 2023
- 6 min de leitura
Atualizado: 4 de mar. de 2024
No cenário do Rap Nacional, essas raízes representam o Underground, que tanto gera debates e comparações com a cena Mainstream

As raízes profundas de uma árvore crescem mais do que podem ser vistas. Muitas vezes, parecem tímidas, mas sem deixar de sustentar e alimentar o que lhe gera frutos. Um sentimento de segurança é perceptível - ou ilusório -, afinal, é difícil criticar o que não se pode ver. Da mesma forma, como se exalta e se protege o que não se toca? No cenário do Rap Nacional, essas raízes representam o Underground, que tanto gera debates e comparações com a cena Mainstream, que se formos seguir a divagação, seriam os frutos, que são mais vistos e procurados.
Para começar, vamos pensar na música como uma folha, que naturalmente possui dois lados. a frente representa o topo, o máximo da popularidade que um artista ou cena pode chegar (Mainstream) e, do lado oposto, o menos observado, visível apenas para os mais curiosos desse mesmo gênero (Underground).
Essa relação, na teoria, principalmente em um certame geral da música, é cíclica: o artista vai ganhando popularidade por determinado motivo (ou por um conjunto deles) até chegar ao ponto em que começa a penetrar a zona de pessoas influentes, que notam e começam a difundir sua arte. A partir daí, o rumo é até o ponto máximo de sua curva, para depois perder novamente sua popularidade. E vale ressaltar que isso é saudável, pois sem esse ciclo não teríamos muito do que ouvimos hoje em dia. Porém, ao observarmos o que o que tem mais espaço nesse ciclo, que representa o mainstream geral da música, veremos uma arte que conta muito pouco com o que é crítico, disruptivo e combatente.
O que acontece, na realidade, é que o mainstream não foi feito para receber a cultura de rua, ele não deseja contar com o Hip Hop. E sejamos sinceros, o relacionamento dos MCs com a televisão sempre foi controverso. Por se tratar de uma cultura marginalizada, produzida em sua grande maioria nas periferias dos grandes centros urbanos brasileiros, o rap se manteve durante muitos anos no Brasil longe dos espaços midiáticos dedicados à divulgação da música brasileira. Esse fato, de um jeito ou de outro, acabava sendo acentuado pela postura defensiva de muitos rappers em relação à divulgação de suas músicas pela mídia.
Como pode existir um artista de rua “convencional” se o rap não está na televisão, no rádio ou nas novelas? Vale lembrar que a revolução musical criada pelo rap não foi apenas estética, mas também política. Neste contexto, a hostilidade dos rappers em relação à mídia e à indústria musical foi a marca de um estilo comprometido em produzir um som cuja agressividade afastaria a atenção das elites dominantes. Essa resistência se deve ao fato dos rappers temerem que empresários brancos tomem uma das poucas coisas legitimamente próprias dos dominados: sua cultura de rua. Neste sentido, aparecer na mídia representava uma concessão ao sistema.
Convenhamos que o rap não é atrativo para a grande mídia. Onde mais os jovens pobres aprendem o que é “racismo estrutural”, “violência de estado”, “direitos humanos” e “desigualdade social, de classe e de raça”? Todos esses conceitos ensinados sem quase nenhuma das palavras aqui citadas. As rodas culturais, que diariamente ocupam locais públicos a partir da confluência de diferentes artistas de rua, principalmente relacionados às manifestações do hip hop (rap, break, grafite, batalhas de rima, freestyle, discotecagem, skate, poesia) ensinam sobre direitos -os registrados e os “da rua”-, sobre comportamento, sobre regras de condutas e, principalmente, sobre identidade, em especial, sobre identidades marginalizadas.
A indústria musical é hegemônica e sempre se esforçou em não deixar o rap entrar nesta categoria. Quem chegava nos grandes meios não se estabelecia nele. E é justamente por isso que a cultura Hip Hop criou seu próprio mainstream, se é que podemos chamar assim. O cenário da música se estrutura não apenas com base na diferenciação entre grandes, médios e pequenos artistas, mas também na criação de seus próprios meios de divulgação. Programas como 'Yo MTV', 'Manos e Minas' e as rádios comunitárias, que frequentemente começam de forma não oficial e altamente segmentada, desempenham um papel crucial nessa dinâmica.
Até recentemente, ser considerado mainstream estava intrinsecamente ligado a aparecer em veículos de comunicação de grande alcance, como a Folha de S.Paulo, a Rede Globo ou estações de rádio populares. No entanto, a ascensão da internet e a proliferação de plataformas de streaming de música começaram a alterar essa percepção.
Surge assim uma nova categoria: o midstream. Ser classificado como parte desse meio não é de modo algum uma desvalorização, pelo contrário, representa um modelo de negócios. Especialmente para artistas que valorizam a independência e desejam manter controle sobre suas gravações. Ainda assim, não podemos classificar como algo altamente sustentável, posto que o artista deixa de se tornar refém da mídia de massa para depender das plataformas de streaming da grande mídia segmentada pelas big techs (empresas dominantes da publicidade na internet).
Diversos fatores contribuem para a categorização, mas a mídia ainda desempenha um papel fundamental. A importância das nomenclaturas está em entender para melhorar a situação e não pode se tornar uma guerra de egos.
A inspiração na estética Underground que esconde a apropriação artística
O underground é frequentemente um caldeirão de inovação, onde novos estilos e tendências musicais são criados. O mainstream, que costuma trabalhar o “feijão com arroz” que a mídia pede, utiliza intervalos de uma falsa inovação, que muitas vezes é escorada no underground para se manter relevante e atrair um público mais jovem. Isso pode se refletir nas letras, batidas e estilos de roupas adotados. Se não sabem de onde é copiado, parece novo e autêntico. Por outro lado, muitos artistas que se tornam populares no mainstream começaram na rua e carregam consigo influências desse período. Eles podem incorporar a autenticidade e a crueza do underground em seu trabalho, mesmo quando atingem um público mais amplo.
“Ele fala que é pá, mas roubou a estética, a rima, a levada e o cabelo de um negro que já tá há alguns dias no corre” esse verso da música Mano Underground, do MC de batalha Jotapê, discorre sobre a maior questão que divide a cena do rap nacional. Afinal, os artistas famosos copiam os rappers que estão fora dos holofotes?
Se a arte imita a vida, qual das duas blefa?
Quando um artista da cena do rap nacional procura novos caminhos criativos, ele tende a receber elogios da crítica especializada e da mídia popular como alguém que está expandindo os limites do gênero, como se isso fosse viável e desejável. Quanto menos hip-hop tiver no seu rap, mais fácil de vendê-lo. A contribuição musical dos produtores e beatmakers também é frequentemente despercebida, e ainda hoje existe um debate se eles devem ser considerados músicos.
Essa situação desenha uma piada repetitiva, e a única parte prejudicada por isso é a cultura hip-hop como um movimento político. No Brasil, é necessário diluir a autenticidade da cultura negra para que ela seja aceitável para a classe média branca. Diante de um ambiente onde a velocidade, o excesso de informações e a superprodução musical são frequentemente mal absorvidos, surgem desafios. A música se torna manipulável.
Se nos concentrarmos principalmente nos aspectos estéticos e nos padrões de consumo musical da maioria das pessoas, fica claro que alguns artistas estão criando obras que vão de encontro às tendências predominantes, algo que também se traduz nos prêmios das mídias independentes e especializadas que trabalham, assim como a indústria cultural em nosso país, através de cotas e de uma visão mercadológica rendida.
Apontar essas questões não significa desvalorizar o importante trabalho feito por essas mídias e muito menos tentar diminuir a vitrine que eles criam, mas antes buscar que essa vitrine e esse trabalho se amplie para além do fragmentado cenário musical visível.
No entanto, o cenário underground perdura, uma vez que se contrapõe ao status quo estabelecido. Nos últimos anos, temos testemunhado o lançamento de notáveis trabalhos nesse contexto. Apesar da visibilidade extremamente limitada, essas criações têm revitalizado as correntes subterrâneas desse movimento de norte a sul do país. Esses projetos ostentam a sua bandeira de inovação, compromisso político com o Hip-Hop e abordagens de composição e produção que não seguem as tendências da moda.
Atualmente, o Underground vem sendo bem representado pelos MC’s de batalha, que fazem o movimento acontecer nas ruas do Brasil e expandem isso em eventos de freestyle. Nomes como Neo, Guri, Barreto, Maria ZN, Nara, Lili, Magrão, WinniT e tantos outros representam a ascensão das rimas improvisadas no país. Muitos se aventuram na música e se juntam a outros artistas undergrounds, principalmente na vertente do Boombap, como Pecaos, Obelga, Karrasco, Clara Lima e Nego Max.
Esses artistas ocupam uma posição à margem das correntes de pensamento e dos gostos gerais moldados pelos mecanismos da indústria cultural mencionados anteriormente. De fato, intelectuais orgânicos.
No fim, o Rap é orgânico, de seu intelecto ao seu desenvolvimento. As “raízes” que iniciaram esse pensamento representando o underground, os frutos que chegaram ao pseudo mainstream ou o verde que pinta esta árvore fictícia e a esperança de rompimento hegemônico do hip Hop são componentes das “florestas de concreto e aço”, presente na música dos Racionais MC’s e nas ruas cinzas do Brasil.
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