Wicked: um musical de encher os olhos
- Lívia Vieira
- 27 de fev.
- 5 min de leitura

Não é uma tarefa fácil calçar os sapatos – vermelhos ou prateados – de outro alguém. Valer-se da grandiosidade do que veio antes para criar o novo. No cinema, isso se conhece como adaptação: o desafio de criar algo que traduza a essência da obra original, que agrade o fã de olhar afiado e entretenha o novo espectador desavisado. Uma corda bamba que fica ainda mais desafiadora se estivermos falando das grandes produções de musicais, e adianto logo que estamos. Para levar às telonas um ícone dos palcos da Broadway, é preciso entender que, nesse mundo de amor ao drama, as moderações são quase inexistentes. É tudo ou nada, 8 ou 80: aclamação, como em Chicago (2002), que já nasceu um clássico, ou desastre estrondoso, como em Cats (2019), que virou piada.
Wicked: Part One (2024) é a adaptação cinematográfica do musical da Broadway, em cartaz desde 2003, baseado no romance de 1995 de Gregory Maguire, que, por sua vez, é um prelúdio de O Mágico de Oz, lançado em 1900 por L. Frank Baum. Com um legado tão extenso e um público fiel, esse é o tipo de produção que está ciente de sua própria grandiosidade. Logo de cara, o diretor Jon M. Chu parece determinado a nos mostrar sua capacidade de usar muito bem um orçamento generoso. Nos primeiros minutos do filme, um mundo colorido e grandioso é apresentado, seguido de um excepcional número musical em que Glinda, interpretada por Ariana Grande, comemora com os aldeões a morte da personagem principal, a Bruxa Má do Oeste.
A Bruxa Má é Elphaba, brilhantemente interpretada por Cynthia Erivo. Ela é a vilã com pouco espaço para simpatia em O Mágico de Oz, que agora protagoniza sua própria história sobre como se tornou a temida bruxa e o período em que foi aluna da universidade de Shiz, onde conheceu Glinda. A dupla exala química em cena desde sua primeira interação, quando Glinda se choca ao conhecer Elphaba, que tem a pele verde. As duas representam uma fórmula conhecida de contraste entre personagens opostas: o sério e o bobo, o palhaço branco e o augusto, o sarcasmo e os tons escuros de Elphaba, e o adorável narcisismo cor-de-rosa de Glinda. Apesar da fórmula humorística eficiente, elas não funcionariam sem a conexão e devoção das atrizes às personagens. Cynthia, além da voz incrível, faz um trabalho esplêndido em transmitir o peso das emoções de sua personagem, que sofreu com a rejeição a vida toda, enquanto Ariana alcança o tom exato do humor e do crescimento pessoal da loira mais popular de Shiz.
O elenco também conta com grandes nomes, como Jonathan Bailey, que interpreta Fiyero, o príncipe charmoso de coração tão grande que parece caber dois amores; Michelle Yeoh, que, embora já tenha entregue ótimas performances, desta vez fica apagada e decepciona na performance musical — que, por sorte, é limitada —; e Jeff Goldblum, que desperdiça seu grande momento vilanesco e soa como uma caricatura próxima demais de si mesmo. Todos acabam tendo suas performances engrandecidas — ou melhoradas — pela excelência da montagem, do figurino, da coreografia e dos cenários do filme. Refiro-me à quantidade de vezes em que me pareceu necessário arregalar os olhos para que minha visão alcançasse todos os detalhes imperdíveis das cenas, como durante o número musical de Fiyero na biblioteca que aproveita totalmente o cenário e a coreografia, intercalando com pequenos diálogos, sem perder a fluidez. O diretor, que não é nem um estranho a filmes musicais, já tendo dirigido Em Um Bairro de Nova York (2021), sabe bem como vender uma obra para seu público alvo e optou por usar o máximo de efeitos práticos possíveis, com cenários reais, como o trem para a Cidade Esmeralda, que pesa 16 toneladas. Ele também usou os efeitos especiais de forma moderada e encorajou Cynthia Erivo e Ariana Grande a cantarem ao vivo durante as gravações. Erivo se propôs a fazer suas próprias cenas de ação sem a ajuda de um dublê e precisou mudar a forma como respirava para atingir as notas de Defying Gravity, enquanto voava presa pela barriga.
A dedicação e o compromisso com a excelência na arte são marcas do teatro musical que se traduzem bem no longa e sustentam um roteiro ambicioso, assinado por Winnie Holzman e Dana Fox. Além de adaptar o musical com fidelidade, o roteiro reforça a complexidade emocional da história. Tudo parece girar em torno das emoções de Elphaba, que são as responsáveis por controlar seus poderes, enquanto ela lida com rejeição, bullying, amor e amizade. A repressão da Cultura Animal é um ponto interessante do filme, pois força a protagonista a reagir em situações de opressão e injustiça, além de questionar o revisionismo histórico que a universidade está fazendo com a história dos animais. Esse se torna um ponto chave da transformação de Elphaba e é revelado no fim do filme, mas nos convida a investigar os sinais que são dados em diversos momentos.
Quando Elphaba destrói a imagem do Mágico de Oz no hall de Shiz, ao tentar proteger sua irmã, a imagem dos professores animais é revelada. Também há os ataques ao Dr. Dillamond, o bode, último professor animal da universidade, que denuncia as perseguições aos animais falantes e, mais tarde no filme, acaba demitido. Todos esses acontecimentos afetam a estudante de magia que, através das suas emoções afloradas, acaba desenvolvendo seus poderes, nos deixando desconfiar se essa relação de causa e efeito é uma mera coincidência. Tudo se encaixa muito bem no final do filme, que nos deixa com a transformação de Elphaba ao descobrir que a aceitação que sempre sonhou não é o que ela realmente desejava, e a escolha de Glinda, que abre mão da amiga pelo que realmente sempre quis.
O fim tem cara de fim, apesar do "To be Continued" no frame final, que indica a existência da parte II. A história se sustenta sozinha e faz sentido mesmo para quem nunca viu o musical ou nenhuma adaptação de O Mágico de Oz. Para esse público, no entanto, alguns detalhes podem ter passado despercebidos, como os sapatos prateados de Nessarose ou a estrada de tijolos amarelos, que são referências à obra original.
A necessidade de dividir o musical em duas partes é um ponto questionável, já que dedicar mais de 2 horas e meia para apenas uma parte da história parece mais uma decisão comercial do que artística. A escolha de estender a história pode ser vista como uma tentativa de aproveitar o apelo financeiro da franquia, já que a primeira parte deixa o público em suspense e com o desejo de ver o desfecho. Embora a divisão não prejudique completamente o ritmo da narrativa, ela exige um ritmo mais cadenciado, que pode deixar o espectador mais exigente caso o desenvolvimento e resolução completos não sejam igualmente impactantes na sequência. A adesão do público já era prevista devido ao sucesso do musical, e agora, com a aclamação do longa e as diversas indicações, incluindo o Oscar 2025 onde foi indicado a 10 categorias incluindo a de Melhor Filme, tudo indica que o lucro da Parte II será ainda maior.
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