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A Bienal do Livro pelos olhos de uma jovem com muita história para contar (e outras inúmeras para viver)

  • Ana Massonila & João Duarte
  • 13 de abr.
  • 20 min de leitura

No quinto dia da XV Bienal Internacional do Livro do Ceará, o ComCultura foi até o Centro de Eventos para conversar sobre histórias, memórias e literatura com a escritora e jornalista Isabelle Maciel

Isabelle Maciel, de 24 anos, é jornalista e escritora de comédias românticas ambientadas em Fortaleza e com destaque nas personagens femininas / Foto: João Duarte
Isabelle Maciel, de 24 anos, é jornalista e escritora de comédias românticas ambientadas em Fortaleza e com destaque nas personagens femininas / Foto: João Duarte

Às três da tarde de uma terça-feira, do dia 8 de abril de 2025, imagina-se que a XV Bienal Internacional do Livro do Ceará não estaria tão movimentada. Os diversos ônibus excursivos enfileirados pelo estacionamento do Centro de Eventos do estado, cercados por estudantes, professores, guias e muita conversa alta, provam o contrário. Entre eles, de estatura baixa, vestido azul e branco, um par de sandálias perfeito para andar bastante e uma ecobag pendurada no ombro — vazia por enquanto, porque carregava a missão de ser enchida por livros —, Isabelle Maciel, 24, também aguarda com expectativa o momento de explorar tudo o que o evento tem a oferecer.


Isabelle não é mais uma aluna, como os outros. Ela é formada em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com atuações na editoria de política do jornal O POVO e no setor de comunicação do INSS do Ceará. Atualmente, é assessora de imprensa da Escola de Desenvolvimento e Integração Social para Criança e Adolescente (EDISCA) e escritora de comédias românticas com uma colher cheia do sotaque e particularidades de um bom fortalezense nas horas vagas. 


Autora de cinco contos românticos, disponíveis na Amazon, Isabelle vive a paixão pelos livros e pela literatura desde os seus seis anos de idade. Na adolescência, suas mãos encontraram o dom e a prática da escrita, que a levaram até o jornalismo. Foi nas crises identitárias e temporais da passagem para a vida adulta que a jovem mergulhou nas histórias em volta da tragédia do Edifício Andrea, que desabou na manhã do dia 15 de outubro de 2019, no bairro Dionísio Torres, deixando nove mortos. Através do livro-reportagem “Fratura exposta: memórias do desabamento do Edifício Andrea”, Isabelle explora a potencialidade de contar histórias que não podem ser esquecidas, além de transitar e se aventurar entre os caminhos do jornalismo e da literatura, que se unem para formar a pessoa que é. 


Em entrevista ao ComCultura, a escritora e jornalista fala sobre a Bienal, a experiência de escrever as lembranças que atravessam o Edifício Andrea, sobre expressar o luto em palavras e como o seu amor pelos livros influencia a profissão que exerce e acolhe com um olhar duro, mas carinhoso também. 


Confira a entrevista completa abaixo


ComCultura: Como é a sua relação com a literatura e como ela te influenciou a ser escritora?


Isabelle: Pronto, eu comecei a ler com 6 anos. Eu fui revoltada. Porque eu não estava conseguindo aprender a ler. Todo mundo estava conseguindo aprender a ler e eu nada. Aí, eu fiquei revoltada. Então, quando finalmente consegui aprender com os 6 anos, parece que o mundo se abriu para mim. Eu era muito ratinha de biblioteca, né? Eu era da escola pública e no contra-turno estudava no SESC, e no SESC tinha uma biblioteca. Então, eu vivia lendo livros. Eu li tudo. Lia Monteiro Lobato, lia várias coisas. Então, para mim, a leitura sempre foi muito presente na minha vida, de toda forma. Não tem um momento que eu não esteja lendo. Mas, assim, meu primeiro livrão mesmo, tipo grande, foi Lua Nova. Não li o Crepúsculo, eu li Lua Nova. Porque eu tinha assistido aos filmes. Aí, a minha mãe me deu o Lua Nova. Até hoje eu tenho ele. Eu sempre li muita coisa. Eu acho que como estudei em muitas escolas eu estudei em catorze escolas. E eu mudei de cidade, né? Morava em Fortaleza, depois morei em Quixeramobim, depois em Sobral, e voltei para Fortaleza. Então, não era muito de sair. As minhas amizades eram muito efêmeras. Hoje, são minhas amigas, mas amanhã, não mais. Então, os livros sempre foram meus amigos, né? Sabe, essa coisa chata, clichê? Eu estou aqui, mas posso viajar para vários cantos? Então, é isso, aí eu li de tudo, li fantasia, como já falei. Não fui a menina de Harry Potter, fui a de Percy Jackson. Li Percy Jackson, tem tanta coisa. Eu acho que, com a literatura, a gente muda ao longo do tempo, né? E, hoje, as leituras são diferentes, claro. E aí, entrou o jornalismo, foi jornalismo também. Mas, assim, eu sempre fui uma pessoa de romance. Foi isso.


ComCultura: Em cima disso, a decisão de escrever seu primeiro livro foi influenciada por conta dessa carga literária?


Isabelle: Eu nem falo tanto do meu primeiro livro assim. Eu me coloco muito para baixo, me botei para baixo. Não, eu tenho um livro, que é o livro-reportagem (Fratura-exposta: memórias do desabamento do Edifício Andrea). Mas, o meu primeiro conto, na realidade é “Uma Noite de Super-Heroína”. É um conto tão besta. Eu gosto dele, é muito besta. Mas, assim, na realidade, ia ter um concurso com a editora, um concurso de contos, e aí era para ser um conto de Dia dos Namorados diferente, né? E aí, eu queria, já escrevia algumas coisas, né? Uma besteira. Ai, quem nunca esteve pensando escrever uma besteira? Eu tinha um blog na época, né? O “Adormecidas”. A gente escrevia de noite. Como era sofrida, adolescente que sofria. Falava também de livros, e tal. E aí, eu escrevi esse conto, e não passou o conto. Eu falei: “Ai, mulher, não passou”. Só que ao invés de ficar frustrada por causa disso, e eu fiquei muito triste por causa disso, eu falei assim: “Não, eu vou publicar”. Aí, hoje, a Amazon possibilita… Tem as coisas boas e ruins, né, da Amazon, de ser autor e você se auto-publica. Então, você pode se auto-publicar na plataforma da Amazon. É ruim porque monopolizou. Quando a gente publica, está lá, que ele monopolizou, então, o dinheiro é lá, então você vai por lá. Tudo o que monopoliza é ruim. Não vou militar uma hora dessa. E aí, eu aprendi, eu pesquisei como é que fazia a diagramação, como é que enviava, foi uma aplicação mesmo, eu e ele. E aí, uma amiga minha me ajudou com a história. Acho que eu até escrevi na nota. Pelo menos, ali era o meu começo, eu não queria que aquela história ficasse só comigo. Porque eu acho que a literatura, no geral, não é só para você. Claro que o autor escreve o que ele quer que seja aquela história, né? Colocar sua história em alguma coisa. Se for pra você, não é leitura, não é um livro. O importante é encontrar as pessoas. Isso é muito legal. Então, como jornalista, é muito legal. A sua passagem, influenciar, tocar algo, é muito interessante. Então, quando vou lançar, nem que seja uma bomba, vai cair uma bomba na minha cabeça, mesmo que ninguém leia, mas eu [estarei] fazendo algo por mim e para esses personagens, que eu quero que eles conheçam o mundo. Então, foi assim que eu publiquei “Uma Noite de Super-Heroína”. Aí,quando eu publiquei, me deu força para publicar outras coisas. Apesar de eu não amar ele, não amar o conto - e ele passa em Fortaleza, todos os meus contos passam em Fortaleza. Apesar de eu não amar ele, é muito importante para mim porque foi meu ponto de partida, mesmo. Foi a minha vergonha na cara: “Vai, faz!”. 



“Primeiro Segundo Amor” e outros contos autorais de Isabelle Maciel foram publicados independemente pela plataforma Amazon / Foto: João Duarte
“Primeiro Segundo Amor” e outros contos autorais de Isabelle Maciel foram publicados independemente pela plataforma Amazon / Foto: João Duarte

ComCultura: Como você, sendo uma escritora nova e já com seis produções, enxerga a Bienal? 


Isabelle: Foram seis livros, mesmo? Foi, mesmo? Menino, foi! Seis coisas, né? Pois, não é? Eu sempre fui frequentadora da Bienal. Sempre gostei. Eu acho que é um espaço, assim, muito legal, para quem gosta e para quem não gosta de livros. É para a gente conhecer os novos autores. Os autores daqui do Ceará vêm para cá, fazem a exposição. É aquele momento para o leitor conhecer o autor. Só atrás da página, só através de uma tela. É diferente, é um contato mais humano, claro, além de todos os exemplares que têm, enfim. Claro que eu acho que poderia ter muito mais investimento. Não estou falando só do poder público, não, porque é muito investido pelo poder público. Mas, as próprias editoras maiores, que têm de fazer estandes, trazer autores, que poderiam trazer pra cá. Sabe, acho esse investimento, assim, de ter mais editoras grandes, porque tem editoras nacionais, editoras cearenses, como a Companhia das Letras. Mais autores presentes, fazendo sessão, fazendo painéis. Acho, também, que é um espaço muito importante para crianças e adolescentes. É um espaço nosso, claro, que a gente se diverte, a gente se encontra, [a gente] garimpa os livros. Conhecer novos livros também é legal. Mas, eu entendo que é um espaço muito importante para as crianças e adolescentes virem aqui descobrir a literatura, terem contato com o livro físico, conhecer novos títulos. E, também, [a Bienal] tem uma função artística, né? Tem uma função artística diferente, um novo espaço, enfim. E, também, é importante para as crianças se sentirem autônomas. Escolher um livro, escolher alguma coisa. Isso é um passo importante, porque é muito difícil, se você não tem o hábito de ler quando você é criança ou adolescente, [para] você criar depois é muito difícil. Muito difícil, mesmo. Então, claro, eu vejo esses benefícios para quem é autor cearense, autor local, para vir, conhecer o espaço. E, para quem é consumidor, mas eu vejo que tem muito espaço, também, para as crianças e para os adolescentes. 


ComCultura: Entre os lançamentos da Bienal, apenas um livro apareceu contemplado como lançamento neste ano: “Um espião silenciado”, de Raphael Alberti Nóbrega de Oliveira. De que forma você percebe as obras jornalísticas no evento?


Isabelle: Teve uma vez que eu entrevistei o Lira Neto (escritor e jornalista, responsável por escrever duas biografias sobre Getúlio Vargas, ex-presidente do Brasil) e eu perguntei a ele se tinha diferença entre ser escritor e jornalista, e ele disse que não. Para mim, tem algumas diferenças, né. Porque, no jornalismo, às vezes, se você se deixar levar demais no dia a dia, você perde o amor pelo texto. O texto é uma fórmula: eu faço o lead, tem a pirâmide invertida, começa assim, eu tenho o porquê, quem é quem, e eu esqueço, no final das contas, o apreço pelo texto. E, às vezes, sinceramente, na correria você só “tatata” (digitalização rápida) escrevendo, e é normal. Mas, esse gostar do texto, olhar para o texto, é mais diferente. E esses vários pilares da história, esse olhar humano, é o que vai fazer o realismo do jornalismo, mesmo. É o que vai diferenciar a gente de uma IA (Inteligência Artificial). Eu acho que a presença de jornalistas é importante porque a gente fala de gente. Como o Caco Barcellos (jornalista brasileiro, com especialização no jornalismo investigativo), que tem vários livros legais, como o Rota 66, a Daniela Arbex, que tem livros maravilhosos, como o da Boate Kiss (Todo dia a mesma noite), o da Joan Didion (escritora estadunidense, autora de “O álbum branco”) que são muito bons. E eu sinto que trazer a literatura para o jornalismo é sempre importante porque a gente passa a olhar com mais… mais carinho para o texto e, também, para as personagens. A gente olha para a personagem não só [como]: “A gente vai se encontrar hoje, a sua história é tal, seu nome é tal, e acabou”, quando isso não seja você. A possibilidade de você fazer um texto de livro-reportagem, [que] não pode ser um livro jornalístico de outra forma, é você também se humanizar, né? Não deixar que a correria do trabalho jornalístico te desumanize e que consequência faça o seu trabalho no outro, para não machucar o outro. A gente vê muito isso também, como o nosso trabalho pode abraçar o outro. E como é esse lado humano é muito importante. Quando eu escrevi o livro-reportagem com a Camila sobre o Edifício Andrea, a gente queria falar - todo mundo conhecia a história, o que tinha acontecido, mas quem eram aquelas pessoas que morreram, né? Quem são aqueles que soterraram? A gente queria fazer esse apanhado para ser esse senso de humanidade também e fazer um trabalho mais profundo e tal, falar sobre a cidade, outras coisas. Então, eu acho que o livro jornalístico tem muito para falar sobre a sociedade, onde o tempo inteiro a gente está [nela]. E não deixar que as coisas morram. Porque o meio jornalístico e a hora, a quentura, né? Passa muito rápido. A notícia fica velha em um instante. Principalmente com o tanto de informação toda hora. Então, você poder voltar para trás, contar uma história que é muito importante, eu acho que faz ser diferente, né?


ComCultura: Isabelle, no vídeo que você e a Camila gravaram explicando sobre a produção do “Fratura-exposta”, vocês comentaram a dificuldade com algumas entrevistas devido ao peso. Mas, depois do lançamento do livro, como foi o retorno das famílias a vocês?


Isabelle: Pois é, a gente teve o cuidado, depois, de mandar o documento para todo mundo. Avisar que estava lá, e tal. E aí, alguns falaram que gostaram, sentiram bem, e tal. E o resultado, de forma geral, foi positivo, que ficaram muito felizes. Mas, eu percebo, também, que existiu muito cansaço. A gente fez 30 entrevistas, todo mundo foi solícito com a gente. A gente levou vários “nãos”, também. Mas, quem falou com a gente foi solícito. A gente fez os perfis de quem faleceu, conversamos com as famílias, e tal. Eu me lembro que uma, a Dona Isaura, a gente fala que ela gostava muito de ler, ela tinha um clube [de leitura] que era “As Traças”.  E aí, a gente citou isso no perfil dela. A filha dela, a Ana Paula, falou que tinha gostado muito, porque tinha falado sobre isso, e lembrava a mãe dela, né? Como a gente fez perfis de pessoas que já morreram é tão delicado, porque não é a pessoa mesma [falando]. Porque o perfil, vocês sabem, é muito uma percepção sua naquele momento, as nuances, e tal. E ali eram muitas memórias de quem eram próximas a eles. Mas, para a gente, também foi  complicado. Então, saber que a gente fez jus àquelas pessoas foi muito importante. Acho que era a parte mais importante que a gente queria: era fazer jus às pessoas, né? E aí acho que esse foi um retorno muito positivo para a gente, no geral assim. Mas eu também sinto, e acho importante falar, foi o cansaço. É um cansaço do tanto de falar com a imprensa. Porque toda hora você falou sobre aquela dor que você viveu. Às vezes, você sente que você não consegue deixar para trás. É uma dor eterna, então, eu senti esse cansaço. Agora, inauguraram um quartel, né, novo, as famílias receberam a indenização, mas demorou muito tempo para a indenização, foram mais de 4 anos. Então, não era uma coisa simples, mas era uma história que a gente achou que deveria ter sido contada mais a fundo. Se fosse em São Paulo, teria documentário, livro disso e daquilo. E eram famílias, eram várias coisas que mereciam [ser contadas]. E que ainda vão ter novos capítulos, né? Ainda vai ter os julgamentos dos réus. 

“Eram famílias, eram várias coisas que mereciam ser contadas”, relata Isabelle sobre o livro-reportagem “Fratura exposta: memórias do desabamento do Edifício Andrea” / Foto: João Duarte
“Eram famílias, eram várias coisas que mereciam ser contadas”, relata Isabelle sobre o livro-reportagem “Fratura exposta: memórias do desabamento do Edifício Andrea” / Foto: João Duarte

ComCultura: E você pretende fazer uma cobertura sobre esse julgamento, você e a Camila já conversaram?


Isabelle: Talvez não role atualizar o livro, porque a gente pode atualizar, mas eu acho que é um dever nosso acompanhar, ter esse contato com as famílias, assim, superficial, né? Algumas são mais próximas que outras. A Dona Cleide é uma diarista que apresentou a casa, abriu toda a casa dela, nos servia biscoitos. Todo dia ela mandava uma mensagem no WhatsApp, uma figurinha de Jesus. E a gente conversou muito com ela, né? Então, eu acho que é um dever nosso acompanhar, ler o que está acontecendo. Eu acho muito importante. 


ComCultura: Algo que chama a atenção é logo no prólogo, em que vocês narram o Edifício Andrea em primeira pessoa. Como surgiu essa ideia?


Isabelle: Meu pai, Robson. Não, mentira (brinca Isabelle). Então, eu e a Camila dividimos assim: íamos escrever em dupla, eu escrevia uma parte, um capítulo, ela escrevia a outra, e assim por diante. Eram oito perfis, cada um escreveu um. Então, o prólogo quem escreveu fui eu. E aí, primeiro eu fiz um prólogo bem geral, uma coisa assim: “Ah, o livro é sobre isso, sobre aquilo”. Eu mostrei para o professor, e aí, ele: “Isabelle, esse é o espaço que você tem para fazer uma coisa diferente, fazer alguma coisa mais literária, sabe? Algo diferente, quero outra coisa”. Aí, eu: “Valha Minha Nossa Senhora. Valei-me, Jesus. O que eu vou fazer de diferente aqui?” Ai, passei tempo, passei tempo, passei tempo. E a primeira frase era: “Nunca imaginei…”. Espera aí, deixa eu olhar (Isabelle interrompe para pesquisar a primeira frase do livro-reportagem). Pronto, aí ficou na minha cabeça a frase: “Nunca tive medo de morrer”. E já era em primeira pessoa. Eu queria fazer uma coisa mais intimista. Eu me lembro de ter sentado no chão da minha cozinha, [ter pego] meu caderno e escrevi à mão o prólogo. Eu estava tão perturbada. E eu funciono muito melhor escrevendo, primeiro, eu começo a escrever à mão e depois passo para o meu computador. E aí, eu queria trazer essa dimensão de como seria o prédio falando, né? Lembrei muito de um livro que tem da Juliana Diógenes (autora de “IJF: histórias despercebidas de um hospital"), que é quase como se falasse do IJF, do prédio, em primeira pessoa. E eu queria muito essa linguagem, [mas] também feminina. É o Edifício Andrea, né? Vem talvez um prédio, uma visão masculina daquilo ali. Mas, o Andrea me remetia muito ao feminino. E, também, ao que o prédio passou, né? Que é quase uma analogia à violência também. E essa analogia à violência, os homens entendem, mas quem entende mais são as mulheres. Os homens entendem uma superfície, mas quem é violentada todos os dias somos nós [mulheres]. Então, eu queria trazer também esse espaço, essa analogia. Era um espaço onde a gente poderia, também, marcar uma posição, que, por sinal, ela fala: “Nunca tive medo de morrer, mas nunca imaginei que seria morta”. E aí, eu pensei como é que seria aquela noite para ela, como é que seriam as coisas. As casas estavam funcionando. Queria saber: “Teve alguma consequência?”. O prédio também sofreu, né? E ela conhecia todas as pessoas que estavam ali, que estavam dentro dela, as famílias. O prédio foi uma figura presente em vários momentos daquelas pessoas. Então, como é que se sentiria? É igual à nossa casa, a nossa casa testemunha muito do que a gente viveu. Então, no Edifício Andrea, tiveram muitas pessoas que passaram por ali. Então, eu queria trazer essa coisa mais intimista, e tal. E eu gosto dele. Eu não gosto de nada que escrevo, mas eu gosto dele. Me garanti. 


ComCultura: No que você se inspirou para escrever o livro e quais são as suas inspirações no mundo jornalístico? 


Isabelle: No mundo jornalístico, eu li a Daniela Arbex, que escreveu “Todo dia a mesma noite”. A questão é que a gente queria fazer uma narrativa, né? A gente não queria fazer um livro-reportagem só: “Ah, foi isso, isso e isso”. E até tem um outro livro-reportagem sobre o Edifício Andrea que outro autor escreveu, e a gente não queria falar a verdade, a gente queria, de fato, construir uma narrativa, fazer uma imersão, né? Para que as pessoas se sentissem naquele espaço. Então, eu li a Daniel Arbex e o outro livro sobre o Edifício Andrea, como eu contei. Li “O Álbum Branco” da Joan Didion, que é uma outra pegada, mas fala muito sobre a observação também, que é uma olhada daquele espaço. E eu acho que era mais do que a gente queria, né? Fazer um jornalismo que até tem um nomezinho, né? A gente não criou diálogos. A gente fez uma reconstrução da realidade. A gente não fugiu para a ficção. E a gente queria fazer isso, a construção do texto narrativo, mesmo. A gente teve essa preocupação. Pelo menos o primeiro capítulo, que é o capítulo quando começa a reforma, aí, é quando ele cai e, no segundo, é o resgate. A gente queria falar sobre várias coisas, e abordar vários caminhos que foram naquela jornada. Era: o dia que [o prédio] caiu aí, o resgate, e algumas histórias específicas, né? Aí, tem umas histórias específicas, como a de uma bombeira, que a gente achou interessante no decorrer, e seria uma quebra, aí, a história seria legal. Falamos sobre os voluntários, que estavam lá, também. Depois, partimos para a questão da investigação, os perfis, como estava lá. Então, apesar de ter, também - a gente misturou alguns modelos, né? Foi a narrativa e, também, [foram] os perfis. No final, a gente foi explicando bem direitinho, explicando o que tinha acontecido, mas nos próximos capítulos, né?. Entre aspas. Acho que foi, mais ou menos, as nossas diretrizes, mas também pautando muito [sobre] a questão do registro de trauma. “Como a gente vai fazer uma cobertura sobre o trauma?”. Todo mundo sabe, isso foi verbalizado. Eu falei com a pessoa que perdeu a mãe, perdeu a avó, perdeu o avô e perdeu o… esqueci o nome, que ficava com ele, esqueci. O cuidador. E ele não tinha contato com o pai dele, e tal. Então, era sobre o trauma também, como a gente vai abordar sobre isso, como vai ser a nossa abordagem disso e como que a gente vai fazer esse jornalismo humanizado, né? Como trazer essas pautas como narrativa. Essa foi a nossa principal preocupação.


ComCultura: Isabelle, ser escritora é um sonho que surgiu e começou a se concretizar a partir do início da sua trajetória no jornalismo ou é algo antigo?


Isabelle: Eu sempre quis escrever. Eu gostava de fazer. Desde da época que eu tinha um blog, escrevendo textos e mais textos. Acho que foi muito por isso que eu quis ir para o jornalismo. Acho que era muito aquele clichê “Ah, eu gosto de ler e gosto de escrever”. Mas é a verdade, né? E eu vejo que a informação, ela é muito importante. Informação é poder, por isso que eu fui para o jornalismo. Acho que são coisas aliadas, né? Eu acho que a minha formação como jornalista me permitiu ver o texto de outra forma também. É que tem um amadurecimento. A escrita, ela não é “Ah, nasci com ela” e aí você vai escrever. Não é somente isso, você pode ter uma pré-disposição para escrever melhor ou não. Mas ela é treino. E quanto mais você escreve, mais você melhora. Então eu tenho vontade de trabalhar como escritora, porque eu sinto, conversa assim de doida, que meus personagens precisam se contar, precisam sair, né? Se eu guardo para mim, não seria suficiente. Eles querem contar a história deles para as outras pessoas também. E acho que o jornalismo me deu essa possibilidade de tratar melhor o texto, saber as possibilidades. O jornalismo me influenciou muito, em quem eu sou hoje, como gerencio o mundo, como escrevo, mas eu acho que meu desejo de escrever influenciou também muito eu como jornalista e a minha carreira dentro do jornalismo.

“Autora de Fratura Exposta: memórias do desabamento do Edifício Andrea e de comédias românticas com sotaque cearense” é como Isabelle se descreve em suas redes sociais / Foto: João Duarte
“Autora de Fratura Exposta: memórias do desabamento do Edifício Andrea e de comédias românticas com sotaque cearense” é como Isabelle se descreve em suas redes sociais / Foto: João Duarte

ComCultura; Você comentou sobre o seu desejo de seguir a carreira de escritora. Hoje com a digitalização da literatura, o booktok, a própria Amazon, como você enxerga a profissão?


Isabelle: Sendo bem sincera com você, tem que ter amor, tem que ter a vontade, mas tem que ter dinheiro. Para um bom lançamento, uma boa coisa. Porque é muito difícil chegar a um editor. Isso [a bienal] que a gente tá olhando, as editoras, né? Como é que se chega nelas? Para você ser independente hoje, fazer esse lançamento, você tem que ter dinheiro. Aí você faz uma boa capa, impulsiona o livro nas redes sociais, contrata aquele influenciador para falar sobre ele. É triste falar isso, mas é a realidade. Grande parte em relação a você lançar um livro também é o marketing que você faz. Como você vende ele. Quando você vê, tem lançamento todo o mês, toda sexta-feira, toda semana. Como você vai se destacar nesse meio? Isso é algo muito cansativo, sendo sincera. Porque o tempo que você iria gastar para pensar em uma história, para ler de novo a sua história, para revisar ou pensar em outras possibilidades, às vezes, você gasta com o marketing. Porque é um dinheiro que você investe, então o dinheiro tem que dar retorno também. (Isabelle é interrompida pelas risadas de estudantes de uma escola à passeio, que passam correndo nas proximidades da área de descanso em que a entrevista acontece. Ela os observa e sorri. “Eles estão bem animados”, comenta em um tom de voz mais suave antes de retornar à pergunta.) Você quer ter um retorno, ninguém sobrevive de amor. O amor é ótimo, mas acho que [os autores independentes] também merecem ter um retorno. E há também uma digitalização da produção literária, né? Você vê um autor que não publica só um, mas dois, quatro livros por ano. Eu acho que isso perde muito na escrita. Então, me perdoem, é a minha opinião. Você perde o trabalho para que ele [o livro] não seja lançado só para ser lançado, né? Então eu acho que essa digitalização também é um problema. Vem muito desse imediatismo. 


ComCultura: Como você comentou, vivemos hoje em uma sociedade imediatista e midiática, com o jornalismo precisando se adaptar a essa nova realidade. Você acredita que a escrita literária tem o potencial de ajudar a escrita jornalística a evitar cair nas armadilhasas armadilhas dessaesse imediatismo?


Isabelle: Ela pode valorizar o conteúdo jornalístico. Principalmente a fazer uma coisa diferente, principalmente agora que todo mundo tem acesso à rede social. É muita informação, às vezes você não sabe como selecionar o que é mais importante. Eu vejo o jornalismo hoje mais como um curador. A gente tá toda a hora combatendo fake news. “Isso é verdade, isso é mentira”. E eu acho que a escrita literária, enfim, ela pode trazer um conteúdo diferente para o jornalismo e um olhar diferente das coisas. A falar desses assuntos que são mais importantes com um olhar mais profundo. Mas eu acho que esse jornalismo rápido e automático, ele é importante também. Mas como posso fazer ele da melhor forma possível, né? Eu acho que isso tem muito do mercado de trabalho. Mercado de trabalho tem que ser assim, 24 horas por dia. Como é que eu vou checar essa informação? Como é que eu vou ter uma outra visão sobre isso? Eu acho que o nosso erro é deixar que essa imediaticidade com que a informação sai acabe traumatizando os outros. A informação direta e efetiva, ela é importante para o nosso dia-a-dia. Se tem um acidente na BR e ele tá impedindo o trânsito geral, isso é importante de ser noticiado naquele momento, no agora. Mas será que eu preciso ir lá e mostrar quem tá morto? Não, eu não preciso disso. Então esse olhar mais humano, que a escrita literária às vezes também traz, é olhar o indivíduo que está ali, aquela pessoa, ela é a sua fonte. E a sua fonte deve ser tratada com respeito. Ela é humana. A partir do momento que você a desumaniza, em prol do trabalho, o jornalismo também vai se desumanizar. Eu acho que a literatura pode ajudar a gente a fazer essa retomada de um texto mais trabalhado e tal, mas a gente nunca pode esquecer que tá, a literatura é ótimo demais, mas o trato com o humano é o ideal, sabe? Porque no dia a dia nem todo mundo vai ter tempo para ler uma Piauí (Revista mensal de jornalismo em profundidade, criada em 2006 por João Moreira Salles) de três páginas, quatro páginas. Então como eu faço o prático da melhor forma possível? 


Comcultura: Para finalizar, o seu trabalho mais recente é a novela “Flores e Cookies de Natal”, publicada em dezembro de 2024, certo? Como surgiu a inspiração para retratar um romance natalino que aborda a temática sensível do luto?


Isabelle: Eu já tinha um conto de natal. “As infinitas possibilidades de tudo dar errado no Natal”. Mas eu tinha muita vontade de escrever outra história natalina e eu tinha o Dom e a Serena comigo há muito tempo.  E eles ficaram dois anos guardados nos meus papéis, nos meus cadernos. E eu queria essa abordagem sobre o luto de alguma forma, mas depois entendi que aquela história não era a hora de eu contar ela. Porque, depois de toda essa questão do Edifício Andrea, de conhecer outras pessoas, ver como é que é… Claro, eu jamais desejaria que isso tivesse acontecido, mas me ajudou muito a escrever, escrever como é que era o sentimento para o Dom, para o que ele estava passando. Para quem não sabe, ele perdeu a irmã dele no Natal e ele não comemora o Natal. E aí, nesse meio tempo, a mãe da minha madrasta morreu e hoje eu moro na casa dela. E eu tive um contato muito grande com ela. E você estar na casa da pessoa é um luto muito diferente do luto imediato. Quando a pessoa morre, é aquele choque. É um vazio muito grande que você sente, de forma geral. Você tem um acolhimento dos outros muito grande, mas aquilo passa. Quando que, no dia a dia, é uma coisa tão complexa. Você olha para uma panela, uma frigideira, e você pensa: “Meu Deus, era a cara dela”. Você vai olhando para as coisas e pensando: “Ela adorava isso”. Eu tô na casa dela, tudo me lembra ela. E é uma coisa que o Dom fala, né? “Como é que eu vivo em um mundo de tantas coisas que a minha irmã não vai viver? Ela não vai presenciar isso aqui que eu vivo”. E tem coisa besta. Ele fala assim: “Ela amava a Beyoncé. E ela nunca escutou os novos álbuns da Beyoncé, enquanto eu posso fazer isso”. Então, eu acho que essas minhas experiências, tanto na parte do Edifício Andrea, tanto na morte da da dona Telma, fizeram com que eu escrevesse o luto dele de uma forma mais verídica, mais verdadeira. Eu acho que procuro esses meios de falar sobre a morte e tentar também… como eu posso dizer? Tentar me preparar e entender o luto. Eu acho que a dor precisa ser falada. A gente não fala sobre ela. É muito difícil a gente falar sobre ela.

“Flores e Cookies de Natal”, de Isabelle Maciel, narra a história de Dom e Serena, ambos com visões diferentes sobre a data e a vida, em uma tentativa de ressignificá-las juntos / Foto: Arquivo Pessoal
“Flores e Cookies de Natal”, de Isabelle Maciel, narra a história de Dom e Serena, ambos com visões diferentes sobre a data e a vida, em uma tentativa de ressignificá-las juntos / Foto: Arquivo Pessoal

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