'Vejo Madonna pelos meus, que se foram pela Aids'
- Ludmyla Barros
- 5 de mai. de 2024
- 11 min de leitura
Atualizado: 5 de mai. de 2024
Como a rainha do pop, ao longo de sua carreira, lutou pelo combate à Aids e como isso escancara o poder político da cultura

A praia de Copacabana contava com uma grande quantidade de pessoas, mesmo que fossem só os testes do show. Um muro provisório foi montado e, assim, ainda que na ponta dos pés, pouca coisa podia ser vista pelo público naquele momento. Um pontinho louro no fundo, era ela.
No calçadão, relatos de uma movimentação a todo vapor. Comerciantes, vendedores de côco, milho, além de artistas de rua com um sorriso de orelha a orelha pelo alto fluxo dos mais variados perfis de pessoas. Gente da cidade, gente de outros estados, gente de fora, gente mais velha, gente mais jovem, gente animada, gente só curiosa mesmo: tinha de tudo. Todos loucos por um spoiler de Madonna, que iria se apresentar ali, de graça, em poucos dias.
O que o público conseguiu ver com clareza, no entanto, foram rostos conhecidos, mas não o dela - que estava mascarada. No grande telão ao lado do palco, durante a passagem de Live to Tell (True Blue, 1986), imagens dos cantores Renato Russo e Cazuza e do sociólogo Betinho surgiram em preto e branco.
Além deles, fotos de outras cinco personalidades integraram um segmento no show, em uma parte em homenagem a personalidades que faleceram em decorrência da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), doença causada por complicações do vírus HIV.
Foram homenageados: Cazuza, cantor; Renato Russo, cantor; Caio Fernando de Abreu, escritor e poeta; Claudia Magno, atriz; Sandra Bréa, atriz; Wagner Bello, ator; Zacarias, humorista; Thales Pan Chacon, ator; Betinho, sociólogo e ativista.

Em meio à enxurrada de artigos, matérias, reportagens, VTs, podcasts lançados recentemente sobre a Madonna, muito se é dito. Tópicos como a libertação sexual, o feminismo, o combate ao etarismo são citados. E, de fato, todas são questões que permeiam a carreira da chamada rainha do pop. No entanto, a sua importância para a comunidade LGBT, por exemplo, é um dos fatores mais marcantes e não se dá apenas pela persona que a cantora traz, mas muito pela luta direta na desmistificação da Aids e no combate à sorofobia, estigma contra pessoas que vivem com HIV.
No apogeu da epidemia, nos anos 80, a população LGBT era muito vulnerável e associada ao vírus, embora já no início tenham sido relatados casos em mulheres, bebês, dentre outros grupos. A percepção era que a Aids era uma “peste gay” e, assim, a comunidade via muitos dos seus morrendo, jovens, rapidamente, sem explicação e sem qualquer apoio governamental. Houve a discriminação, a exclusão, a homofobia.
Uma manifestação do artista que fosse, então, não era bem vista. Muitos artistas portadores do vírus nunca afirmaram - compreensivelmente - que lutavam contra ele. Assim, grande foi a surpresa de, no então lançamento da maior cantora da época - Like a Prayer, 1989, haver uma cartilha com orientações sobre o vírus HIV. Uma ação que parece pequena, mas que mudou a vida de muitos da comunidade, além de ser o estopim de uma série de ações de combate à Aids, feitas por Madonna.

"A AIDS é uma doença de ‘mesmas oportunidades’. Afeta homens, mulheres e crianças, sem distinção de raça, idade ou orientação sexual. A AIDS é causada por um vírus chamado HIV. Até o momento, não há dados conclusivos para explicar como a AIDS começou ou de onde veio. Pessoas com AIDS – independentemente de sua orientação sexual – merecem compaixão e apoio, não violência e intolerância.
Você pode contrair a AIDS fazendo sexo vaginal ou anal com um parceiro infectado
Você pode contrair AIDS compartilhando agulhas de drogas com uma pessoa infectada
Você pode contrair a AIDS se nascer de uma mãe infectada
O simples ato de colocar uma camisinha pode salvar sua vida, se ela for usada corretamente e toda vez que fizer sexo.
AIDS não é uma festa."
“Pessoas com Aids merecem compaixão”
Daquele período incial da doença até agora, o cenário do HIV mudou. Hoje já se é possível viver normalmente sendo portador. Com o tratamento adequado, o vírus chega a ser indetectável e, ao mesmo tempo, intransmissível. Ou seja, nem os sintomas são apresentados e nem são passados para outra pessoa. Apesar disso, ainda é necessário se prevenir.
A Aids segue como um problema de saúde pública. A melhora dos quadros em relação aos anos 1980 não pode significar um relaxamento. Segundo o Ministério da Saúde, em 2022, mais de 1 milhão de pessoas viviam com HIV no país. Além disso, quase 200 mil pessoas sabiam que eram portadoras do HIV, mas não se tratavam. Você pode conferir mais informações sobre prevenção no fim deste material.
Nos anos 80, enxergava-se o contágio como uma sentença de morte, um espectro que rodeava a sociedade e temido, em especial, pela comunidade LGBTQIA+. Isso porque, além do medo de contágio, da perda de entes queridos, do temor, as pessoas queers eram bombardeada com discriminação, da doença que se acreditava estar ligada ao estilo de vida e "comportamento de gays".
Assim, as pessoas portadoras do vírus HIV e a comunidade LGBTQIA+, como um todo, se viram abraçadas por movimentos de apoio vindos de artistas como Madonna. Até hoje, essa admiração se perpetua, por meio de relatos de sobreviventes da epidemia e de familiares, que propagam legados.
Confira abaixo, arrastando para o lado, algumas declarações relatadas publicamente por meio das redes sociais, mas expressas aqui de modo anônimo, para preservar os casos:
Madonna, os amigos perdidos, e as homenagens em shows
A juventude de Madonna e seu início no meio artístico se deu em meio ao cenário queer da cidade de Nova York, em meados dos anos 80. Os primeiros casos e a expansão do contágio do vírus HIV ocorreram na mesma época e a artista presenciou tudo de perto.
O primeiro caso registrado de Aids, nos Estados Unidos, foi registrado em 1981. Cinco jovens gays em Los Angeles foram diagnosticados com uma infecção pulmonar incomum conhecida como pneumonia por Pneumocystis carinii (PCP) e dois deles haviam morrido. Um mês depois, 26 homens gays em Nova York e Califórnia contavam com os mesmos diagnósticos. O número seguiu crescendo.
Madonna surgiu neste cenário, chegando à Nova York em 1978, em uma anedota famosa e confirmada por ela mesma: tinha apenas 35 dólares no bolso e um sonho. Estreou musicalmente em 1983, com um primeiro álbum autointitulado, já fazendo barulhos com músicas como Everybody e Holliday. Neste mesmo ano, o vírus HIV foi atribuído como sendo o causador da síndrome Aids.
Uma das pessoas fundamentais no crescimento de Madonna foi Martin Burgoyne, responsável por gerenciar a primeira turnê em clubes, e por desenhar a imagem da capa do single da música "Burning Up", do álbum de estreia. Martin também era seu melhor amigo e colega de apartamento. Em agosto de 1986, com apenas 23 anos, ele começou a apresentar sintomas da Aids. Em um alastramento rápido, faleceu em novembro do mesmo ano.

Além de Martin, a epidemia do vírus HIV levou diversas pessoas do entorno de Madonna. Dentre eles seu primeiro professor de dança, Christopher Flynn e dançarinos das turnês da cantora. Em termos gerais, desde o início, no mundo todo, estima-se que 39 milhões [33,1 milhões – 45,7 milhões] de pessoas morreram por causas relacionadas à Síndrome. Dados são de 2022.
Foi no ápice do terror, no fim dos anos 1980, que houve a divulgação da cartilha no disco Like a Prayer. Antes disso, em 1987, durante sua primeira turnê internacional, Who 's That Girl, ela já era engajada e havia arrecadado $400 mil para a amfAR (The Foundation for AIDS Research), uma das principais organizações sem fins lucrativos dedicada ao apoio à pesquisa da aids.
Já na turnê do Like a Prayer, a Blonde Ambition, houve a participação de dançarinos portadores do vírus HIV, os quais muitas outras oportunidades haviam sido privadas devido a desinformação e preconceito.
Para se ter noção do cenário da época, uma das fotos mais marcantes do período envolve outra grande figura pública: a princesa Diana. Em um registro, ela aperta a mão de um portador do vírus sem utilizar luvas. A simples ação chocou e serviu para combater desinformações disseminadas na época, de que o contágio se daria via toque físico.
Com a virada para os anos 1990, o número de mortes seguia crescendo. Nesta época, o Brasil perdeu grandes nomes como os cantores citados no início: Cazuza morreu em 1990, Mauro Faccio Gonçalves também, já Renato Russo faleceu em 1996 e Betinho em 1997.
Em 1996, os cientistas lançaram o coquetel antiaids, uma combinação de medicamentos capaz de tornar o vírus indetectável no organismo, proteger o sistema imunológico e impedir que a pessoa infecte outras. No mesmo ano, sua distribuição passou a ser pública no Brasil. O HIV havia passado a ser uma doença crônica.
Ao longo dos anos, o cenário foi melhorando: os métodos de prevenção se expandiram, a discriminação contra portadores do vírus virou crime no Brasil e hoje se vive com menos assombro, mesmo portando o HIV. No entanto, as ações de combate e prevenção não podem parar. A doença segue sem cura.
Na carreira de Madonna, as manifestações nunca pararam. Dentre as mais notáveis, estão missões de ajuda a crianças africanas que ficaram órfãs por causa da Aids. Em 2020, estimava-se que mais de 25,7 milhões de pessoas viviam com HIV na África Subsaariana.
Uma das apresentações mais marcantes está relacionada a este tema. Durante a turnê Confessions, em 2006, Madonna cantava Live to Tell (mesma música da atual homenagem) em uma cruz, com uma coroa de espinhos, enquanto uma contagem crescia ao fundo. No fim, totalizam-se 12 milhões. Na época, este era o número de crianças africanas órfãs pela Aids. Confira abaixo:
Vale lembrar que além de Madonna, outras figuras públicas se manifestaram em apoio às vítimas do vírus, combatendo os estigmas. Dentre elas destacam-se Lady Di, já citada, além de artistas negras como Patti LaBelle, Dionne Warwick, Donna Summers e Gladys Knight.

Apoio de artistas contrasta com preconceito e discriminação de representantes do poder público da época
Manifestações de apoio de artistas são frisadas hoje muito devido à carência de ações e até mesmo a constância de declarações discriminatórias de representantes do poder público da época. Isso foi uma realidade em todo o mundo, incluindo o Brasil.
Nos Estados Unidos, o presidente da época Ronald Reagan tratou com omissão os primeiros casos. Ele foi eleito em 1980, apoiado por movimentos cristãos conservadores.
Em 1982, pela primeira vez, a síndrome foi citada diretamente na Casa Branca. Em uma coletiva, a pergunta foi recebida com risos dos presentes, incluindo representantes de Ronald Reagan: um escárnio em meio a morte de centenas de pessoas. Confira abaixo a íntegra da entrevista:
Descrição:
“Kinsolving: O Presidente tem alguma reação ao anúncio do Centro de Controle de Doenças em Atlanta de que a AIDS é agora uma epidemia em 600 ou mais de 600 casos?
Fala do representante: [Murmurando baixinho] AIDS. [Ininteligível]
Kinsolving: Mais de um terço deles morreram. É conhecida como “peste gay”.
[Risos ao fundo]
Kinsolvendo: Não, é. Quero dizer, é uma coisa muito séria. Uma em cada três pessoas que contraem isso morreu. E me pergunto se o presidente estava ciente disso.
Fala do representante: não tenho. Você é-
[Mais risadas dispersas]”.
Em 1983, Reagan mandou um representante dizer, pela primeira vez, que estava ciente da Aids, “há alguns meses”. Ele se reuniu com membros da comunidade LGBT em meados daquele ano, mas ficou “insatisfeito com os debates” e optou por se reunir com ativistas conservadores.
Estes, inclusive, passaram a integrar o Governo. "Os pobres homossexuais. Eles declararam guerra à natureza, e agora a natureza está exigindo uma terrível retribuição”, é uma das declarações de Pat Buchanan, então diretor de Comunicação da Casa Branca. Esse tipo de pronunciamento, obviamente, contribuiu para o estigma com a população LGBT e com a disseminação do contágio do vírus e da Aids.
Financiamentos para pesquisas sobre a Aids foram conseguidos com muita luta nestes anos iniciais. Um reconhecimento do presidente quanto à epidemia se deu apenas em 1985 e uma primeira iniciativa do Governo ocorreu apenas em 1986. O governo mudou um pouco a postura, com pronunciamentos oficiais e realização da Comissão Watkins, voltada para o estudo do vírus. Em 1988, a Comissão emitiu um relatório. Dentre os resultados, constatou-se que a "falta de liderança" era um dos maiores obstáculos ao progresso contra a Aids, nos Estados Unidos.
No Brasil, o debate sobre a HIV circulou a Assembleia Constituinte de 1987 a 1988, que definiu a nossa constituição atual. Deputados constituintes como Nelson Aguiar (PMDB-ES), Orlando Pacheco (PFL-SC), Jorge Arbage (PDS-PA) e Eliel Rodrigues (PMDB-PA) se manifestaram nas sessões, contrários a políticas de apoio à comunidade LGBT da época e ao incentivo de métodos de prevenção.
Orlando Pacheco chegou a dizer: “O que se abate sobre o Brasil e o mundo nestes dias de crises e males insolúveis é resultado do pecado. O juízo de Deus se abate sobre aqueles que contra Ele se insurgem e que escarnecem dos seus mandamentos. A aids é consequência da devassidão que enlameia o mundo”. Essa declaração foi feita em pleno Congresso, no país com o então segundo maior número de pessoas infectadas com o HIV.

Na época, além de declarações homofóbicas e sorofóbicas, foram disseminadas desinformações na Constituinte, foi dado espaço a médicos negacionistas, ouvidas teorias da conspiração, além da constante utilização da Aids como forma de criticar adversários políticos. Você pode conferir tudo isso nesta matéria da Agência Senado.
A pressão partiu de pessoas de fora, como o próprio sociólogo Betinho, contaminado por transfusão de sangue. Ele defendeu transfusões seguras, e, assim, o Ministério da Saúde criou regras exigindo a testagem do sangue e proibindo a remuneração dos doadores.
Madonna, Betinho, Lady Di, Patti LaBelle, Dionne Warwick, Donna Summers e Gladys Knight. Com a carência de apoio governamental, a classe artística da época colaborou na orientação e no combate ao vírus. Assim, percebe-se o poder político dos representantes culturais. A cultura é um transformador social e os artistas são agentes dessa mudança que segue ocorrendo e precisa seguir, no futuro.
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No show deste sábado, foram instalados três postos de atendimento, oferecendo água e serviços médicos. Dentre eles, havia a disponibilização de testes rápidos de HIV, distribuição de preservativo e gel lubrificante ao lado do palco.
A homenagem às vítimas de Aids ocorreu na hora inicial do show. Fotos dos amigos de Madonna, de artistas, além dos brasileiros foram projetadas nos telões enquanto Madonna cantava ‘Live To Tell’. Na multidão, as vozes faziam eco à mensagem da música. As mãos levantadas se transformavam em aplausos conforme as figuras apareciam. Em vídeos, é possível ver quem apontasse para o céu e fechasse os olhos.
Hoje, a percepção é de que o público do show foi muito maior do que os 1,5 milhão captado em números. Cada presente parecia levar consigo outras pessoas. Os que ficam, com perdão do trocadilho, vivem para contar a história dos muitos que se foram cedo demais, e, assim, suas lutas se perpetuam, por meio da música, da cultura e da resistência, que, no fim, andam lado a lado. “Estou vendo Madonna pelos meus”, parece ser o mantra.
Serviço: Saiba como se proteger do vírus HIV
Os perigos do vírus HIV ainda não acabaram. Apesar de os portadores conseguirem viver normalmente com ela, a doença segue sem cura e precisa ser prevenida.
Hoje, é possível que pessoas que tenham contraído o vírus contem com carga viral indetectável – quando o HIV está no organismo, porém numa quantidade tão inexpressiva que mesmo os métodos laboratoriais mais precisos não são capazes de flagrar sua presença.
O preservativo, ou camisinha, é o método mais conhecido, acessível e eficaz para se prevenir da infecção pelo HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis (IST), como a sífilis, a gonorreia e também alguns tipos de hepatites.
Os preservativos masculino e feminino são distribuídos gratuitamente em qualquer serviço público de saúde. Caso você não saiba onde retirá-los, ligue para o Disque Saúde (136).
Além disso, fique atento à Profilaxia Pós-Exposição ao HIV. A PEP, como é conhecida, é uma medida de prevenção de urgência à infecção pelo HIV, hepatites virais e outras infecções sexualmente transmissíveis (IST), que consiste no uso de medicamentos para reduzir o risco de adquirir essas infecções. A PEP é oferecida gratuitamente pelo SUS.
Deve ser utilizada após qualquer situação em que exista risco de contágio, tais como: Violência sexual; Relação sexual desprotegida (sem o uso de camisinha ou com rompimento da camisinha); Acidente ocupacional (com instrumentos perfurocortantes ou contato direto com material biológico).
Já a Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PrEP, do inglês Pre-Exposure Prophylaxis) consiste no uso de antirretrovirais (ARV) que são utilizados antes da exposição para reduzir o risco de adquirir a infecção pelo HIV. Essa estratégia tem se mostrado eficaz e segura em pessoas com risco aumentado de adquirir a infecção.
Saiba mais no portal do Ministério da Saúde.
Com informações do Ministério da Saúde
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