top of page

Gritos de sangue, identidade e socorro: o que se camufla na cultura da diss no rap nacional

  • Foto do escritor: Rangel Diniz
    Rangel Diniz
  • 7 de jun. de 2024
  • 8 min de leitura

Atualizado: 16 de jul. de 2024

De Emicida em “InSOMnia” até “Espero que entendam”, da Ebony, nos dias atuais, a característica sempre foi marcante no rap brasileiro, contendo não apenas ataques, mas também muitas mensagens ocultas sobre a música e a sociedade



No intrincado universo do hip-hop, com narrativas desenhadas em batidas e identidades declaradas em versos, a diss track emerge como uma faceta única e frequentemente controversa da cultura musical. Originada no rap norte-americano, a modalidade, se assim pode ser chamada, encontrou solo fértil no Brasil, transformando-se em um elemento distintivo e de amplo debate. Para parte da cena, uma ferramenta que impulsiona a cultura. Para outra, algo que foge das rédeas do movimento e atrasa seu desenvolvimento.


Em sua essência, a diss track é uma forma de expressão artística. Diss é a abreviatura da palavra em inglês disrespect (desrespeito), ou seja, é a cultura das “tretas musicais”. Quando executadas com maestria, as diss tracks transcendem a simples competição e se tornam verdadeiras manifestações de talento e criatividade. Como fica claro, há o aspecto de rivalidade embutido em sua essência. Tais faixas são frequentemente vistas como uma forma de marcar território e afirmar a posição de um rapper dentro da cena musical.


O “sangue” parte dos ataques pessoais, quando as linhas são utilizadas para resolver situações entre os envolvidos. A “identidade” está na luta por espaço, como quando a rapper Ebony lançou uma música solo atacando grande parte do cenário masculino da vertente em que canta, o trap. O “socorro” está nas entrelinhas, como em uma das mais famosas faixas no estilo: “Sulicídio”, de Baco Exu do Blues, que mesmo sendo caracterizada assim, talvez nem se encaixe de forma perfeita na denominação.


A diss, em grande parte das vezes, envolve algum artista que integra o pseudo mainstream (máximo da popularidade que um artista ou cena pode chegar) do rap nacional, mas as discussões utilizando versos rimados estão ainda mais presentes nas batalhas de freestyle, ou seja, no cenário underground (o menos observado, visível apenas para os mais curiosos desse mesmo gênero).


Sangue: além dos ataques, as feridas pessoais


Na tapeçaria das diss tracks, a linha "sangue" vai além das simples trocas de versos. Ele representa a dimensão emocional e pessoal das disputas, onde as palavras afiadas podem infligir feridas profundas e desencadear conflitos intensos entre os artistas envolvidos.


Muitas vezes revelando vulnerabilidades e fragilidades, os ataques transformam-se em armas verbais, carregadas de emoção e intensidade. No calor do embate, as diss tracks se tornam mais do que simples canções - são manifestações cruas e viscerais das emoções humanas, onde cada verso é uma gota de sangue derramada na busca pela supremacia lírica.


Um grito comum para iniciar uma batalha em rodas culturais parte de uma pergunta para chamar a plateia: “O que vocês querem ver?”. A plateia entoa a resposta “Sangue”. Contudo, tais rodas e saraus representam a união de um povo com uma verdade pouco vista em outros movimentos do país. O “sangue” perdura apenas pelos 30 segundos de cada round tradicional. Em muitas vezes, desabafos para amigos em situações parecidas.


Por sua vez, a música mantém um pretexto parecido, mas varia mais. Algumas das diss tracks seguem isso, em alguns casos sendo até “arquitetada” apenas para visibilidade. Todavia, muitas representam uma rivalidade real e imutável, de uma verdadeira busca por espaço, o que se torna comum em uma cultura esquecida pelos instrumentos hegemônicos.


Os próprios MC’s de batalha entram na modalidade quando migram para a música, como é o caso do histórico embate entre Emicida e Nocivo Shomon, rivais longevos nas “rinhas” que viraram compositores e continuaram trocando diversas farpas ou ataques diretos em suas letras.


Na época, Nocivo se dizia insatisfeito com rappers “modinhas”, que fazem parceria com artistas pop para crescer, quando veio a primeira música de insatisfação (outra tradução livre da diss track) direta para Emicida.


Como o Emicida usa o bordão “A rua é nois”, Nocivo mandou a resposta em 2012: “A Rua é quem?”, com punchlines (trechos mais impactantes) como “tu conta muita história pra quem tem tão pouca vida”. O adversário respondeu todos os ataques na música “ImSOMnia”, lançada em 2014. Os rappers parecem ter se resolvido após Nocivo soltar a segunda edição de sua faixa com o trecho “enquanto a gente se ataca, ninguém defende o Brasil”. 


Afinal, ambos vieram do mesmo lugar, possuem as mesmas dúvidas e o mesmo anseio. Em um cenário emergente, veloz e triturador, como a dupla sentaria em uma mesa de bar e questionaria coisas como: “E quando a gente vence, para onde a gente vai?”, “Buscar uma vida melhor é, de fato, abandonar minha favela? ou “Se a sociedade vende Jesus, porque não ia vender Rap?”, questão abordada pelo próprio Emicida em uma de suas músicas.


Antes rivais, ambos entenderam seus pensamentos, o que não acontecerá com todos no cenário. A mudança é possível e Emicida explana isso até em seu vulgo. Antes uma fusão das palavras “MC” e “homicida” por conta de suas constantes vitórias nas batalhas de improvisação, onde se denominava um “assassino” que “matava” os adversários através das rimas, hoje seu nome leva outro significado: uma sigla: E.M.I.C.I.D.A (Enquanto Minha Imaginação Compuser Insanidades, Domino a Arte).


As discussões entre dois lados fortes levantam debates inéditos, que se tornam importantes para o entendimento de um povo em determinadas classes sociais. A função de intelectual orgânico nunca foi desenhada para ser leve, ela nasce da dificuldade. É na ação que se encontra a verdade de um grupo, no meio das discussões que se identificam os verdadeiros problemas.


Identidade: Luta por espaço e os não-ditos desrespeitosos


O rap é preto, periférico e uma arma na luta das minorias sociais por direitos que garantam equidade. Contudo, até na cultura hip-hop se encontra preconceito. As rappers brasileiras, por exemplo, ainda enfrentam diversos desafios na indústria. Machismo do público e da produção, falta de investimentos do setor e descredibilização do trabalho de mulheres são alguns dos percalços encontrados por elas. A xenofobia e a transfobia também perduram em grande parte da cena.


A diss se torna um campo de batalha pela afirmação de identidade e espaço dentro da musica. Artistas como Ebony, ao desafiarem não apenas seus adversários, mas também as estruturas de poder estabelecidas dentro do cenário do rap, transformam as diss tracks em uma forma de resistência e autoafirmação.


Cada verso se torna não apenas uma expressão artística, mas também uma declaração de independência e um grito de desafio contra as normas estabelecidas. Nesse contexto, as diss tracks se tornam não apenas um meio de competição, mas também uma plataforma para a expressão de identidades marginalizadas e sub-representadas, tornando-se assim um veículo de empoderamento e inclusão.


Mas o que a cantora Ebony fez que tanto movimentou a cena? Em uma música chamada “Espero que entendam”, cujo o propósito é camuflado por alfinetadas em rappers masculinos como Baco Exu do Blues, Filipe Ret, Djonga, L7NNON, Orochi e BK, a cantora evidenciou que não compete só com as mulheres, saindo de uma caixinha imposta pelo público e desafiando grandes nomes para mostrar que estava no mesmo patamar.


“Amo o BK, ele é um pai para mim. Eu dou comida e troco fralda, ele já está velhinho”, começou Ebony. Em seguida, ela cita Ret e L7. “Rimas, crise da meia-idade aos 40 anos [...] E o L7 que me espere porque porra mano, ainda nem me decidi se tu é preto ou branco”.


Os ataques movimentaram as redes, mas transmitiram a ideia principal, que diz: “Adoro as músicas, mas preciso provar meu ponto. Eu tenho o rosto, o corpo e a rima”. Presença. Ebony ressalta que não é apenas um corpo ou um rosto bonito, mas sim que é isso tudo, mas com muita rima.


Em sua própria música, errou em um ponto que veio a refletir. No verso final, fala: “Se eu tivesse um pa*, os bofes iam estar mamando”. Em um pensamento posterior, entendeu que a rima poderia ter conotação transfóbica, posto que o favorecimento é direcionado ao homem cis. Pessoas trans caem em sua mesma dificuldade de subir na carreira pela hegemonia imposta. Mais uma vez, até nos erros, a arte ensina grupos que passam por problemáticas similares.


Os não-ditos preconceituosos partem de uma resposta exageradamente respeitosa, seja lá o quanto pareça irônico. Naturalmente, as diss são respondidas no mesmo nível, com música de contra-ataque. No caso de Ebony, ela recebeu elogios e motivação. Porque isso seria desrespeitoso?


“Nós não estamos aqui para rebater. Temos que voltar os olhares realmente para as minas, para as pessoas que têm menos visibilidade no sentido da falta de oportunidade muitas das vezes”, disse L7NNON em suas redes sociais.


Na música, Ebony contestou a raça do cantor, como se este fosse preto mas agisse como um branco. Porque a resposta viria assim? Insignificância. Os artistas não responderam a diss por acreditarem que estão a um patamar acima. Medo. O temor por um possível “cancelamento” no caso de uma resposta que fuja do clichê impresso no tweet.


É uma dança delicada entre afirmar-se e navegar pelas reações e repercussões, onde cada linha rimada carrega o peso da história e das expectativas.

A diss track, portanto, é mais do que uma simples batalha de egos. É uma manifestação de resistência e auto afirmação que expõe tanto a força quanto as vulnerabilidades dos artistas. É uma lembrança constante de que, mesmo no cenário aparentemente inclusivo do hip-hop, a luta por igualdade e respeito continua. Em um mundo onde as palavras têm o poder de construir e destruir, é crucial que os artistas usem suas vozes não apenas para desafiar e competir, mas também para promover uma mudança positiva e significativa.


Socorro: "Para você atingir os crentes é preciso acertar os deuses deles"

Quando os rappers Baco Exu do Blues e Diomedes Chinaski, junto com os produtores Mazili e Sly, lançaram a faixa "Sulicídio”, a cena do rap nacional sentiu um impacto profundo. A música mencionou diversos rappers do eixo Rio-São Paulo e inicialmente pareceu ser um ataque direto de dois rappers nordestinos aos artistas do Sudeste. Nomes como Filipe Ret, Felp 22, Caio Nog, Dalsin e Don Cesão foram citados.


No entanto, a intenção da faixa ia além de uma simples agressão aos artistas: o objetivo era alcançar o público e mostrar o Nordeste. Nem todos compreenderam essa mensagem de imediato. Como responder com versos é sempre melhor do que com textos no Facebook, Diomedes usou o cypher "Expurgo", produzido pelo RapBox, para esclarecer suas intenções: "Fui infeliz atacando MC’s? Não. Questionei a indústria", deixando claro o propósito da música.


Baco também lançou, após "Sulicídio", o single "Tropicália", onde utilizou um jogo de palavras para dar sua opinião sobre o impacto da faixa: "eu sujei o Olimpo, eu sujei eu limpo". O "Olimpo" refere-se à forma como o público trata os MCs, vistos como deuses, não por serem melhores, mas por terem maior visibilidade e público. Baco conclui dizendo que irá "limpar" toda a bagunça causada por "Sulicídio".

"Sulicídio" gerou respostas. "SultaVivo" do grupo Costa Gold e "Disscarrego" do rapper Nocivo Shomon (olha ele mais uma vez) foram algumas das mais notórias, focadas em rebater os ataques.


Como em casos supracitados, estando certa ou não, a faixa foi capaz de motivar os MCs citados a elevar seu nível lírico e artístico, além de funcionar como o grito de socorro de uma região. A complacência resultante de um grande público que aceita qualquer conteúdo lançado estava tornando alguns artistas preguiçosos e reduzindo a qualidade do conteúdo.


No fim das contas, o underground ensina

O ódio não surge com um irmão de mesma classe ao escrever uma letra, ele apenas se direciona a ele na intenção de apontar brechas e imposições de um sistema, que tenta coloca a cultura de rua contra ela mesma em diversos momentos. Ela resiste nos quatro elementos do hip-hop, encontrando as respostas em sua própria fragilidade e concessão.


Em uma batalha de rua, mais especificamente a batalha dos estudantes, na cidade de Guarulhos, em São Paulo, um grupo de jovens lamentava a morte de um amigo do movimento que tirou a própria vida por uma série de razões impostas a ele pela própria hegemonia da sociedade.


Naquela ocasião, o jovem homenageado era famoso por fazer rimas, nem sempre cantadas. Mineiro cantava o que sentia com críticas e belas mensagens, tantas vezes divertidas. Na edição em sua lembrança, Jotapê, na época um garoto do underground (hoje mais conhecido e considerado o melhor do país), pediu em sua rima que o público parasse de ouvir os gritos de sangue para escutar os de socorro.


Não se referia ao sangue citado no texto, mas na mensagem passada internamente no discurso das batalhas pelo país. Não era preciso falar, poderia ser analisado apenas o fato de estar. A diss é uma ferramenta de um grande universo como o rap. Um fio em uma tapeçaria.


Commenti


bottom of page