Perfil: Nick Pereira e a arte de 'se inscrever' nos muros de Fortaleza
- Isabella Rifane e Rayane Lopes
- 15 de jul. de 2024
- 6 min de leitura
Através de projeto social, artista levou os marcantes traços do graffiti para cerca de 50 crianças e adolescentes da periferia de Fortaleza

Spray na mão e sorriso no rosto, um homem negro e seu cabelo crespo são o foco da câmera. Atrás dele, uma parede com intensas tonalidades de azul ganha vida. Tudo nessa foto conta uma história, mas você ainda não conhece. Os graffitis falam, o sorriso fala. O que eles falam? Contam uma história de coragem, luta, resistência, orgulho e paixão.
O sorriso de Nick Pereira representa tudo isso e o graffiti é a forma encontrada para externalizar os sentimentos e também de dizer "viva o movimento hip hop, viva a cultura preta!”. Essa foto tem uma descrição e um significado que vão para muito além do que se vê.
As primeiras memórias relacionadas ao gosto de Nick pelas artes visuais são da infância. Ele lembra que quando criança gostava muito de brincar com giz de cera, transpassando para o papel a textura de folhas de árvores. Ele também gostava de copiar as ilustrações presentes nas revistas em quadrinhos e livros didáticos que ele encontrava na escola. Era apenas o início de uma longa jornada desenhando o próprio destino.
Ao passear por alguns bairros de Fortaleza, principalmente nas periferias, desenhos cheios de cores e elementos visuais revelam a imponência da arte urbana. Algumas das obras presentes nos muros da cidade são do artista Nick Pereira, um dos pioneiros quando o assunto é grafitagem.
DESENHANDO A PRÓPRIA HISTÓRIA

Nascido e criado no bairro Couto Fernandes, Nick começou a "se inscrever na cidade" - como ele chama o ato de deixar marcas nos muros - ainda na adolescência. Até aqui são 24 anos de graffiti e de legado na arte urbana.
Ao olhar para trás, ele lembra como tudo começou e enxerga a pixação como uma porta de entrada no universo artístico. Aconteceu quando ele tinha por volta dos 14/15 anos. Na época, ele começou a utilizar o spray para fazer pequenas intervenções nos muros. “No final de 1998 eu comecei a perceber uns desenhos nos muros e aí comecei a escrever meu nome na parede. Mas só a pixação não dava conta desse processo que eu chamo hoje de me inscrever na cidade", conta o artista.
Ele relata que, no final dos anos 90, o graffiti ainda era muito discriminado, mas a pixação era ainda mais carregada de estigma e representava um risco para quem praticava.
“Eu passei a fazer o graffiti desde aquele período. Não fiz mais pixação por conta do risco e também porque muita gente levou tiro naquele último ano, que era 1999”, conta ele.
Com o tempo, a meta era aprender novas técnicas e conhecer mais sobre as artes visuais. Em nossa conversa, Nick cita alguns nomes que se tornaram referência para ele e essenciais para o seu desenvolvimento profissional, como os artistas plásticos José Tarcísio e Galber Rocha.
“Eu quis conhecer os outros artistas do graffiti também, eram poucos na época. [Na cidade] tinha mais ou menos 12 grafiteiros naquele período”, detalha.
NEGRITUDE
A partir desse primeiro contato com a pixação, o jovem Nick teve a oportunidade de conhecer pessoas ligadas ao graffiti e logo passou a frequentar oficinas e se interessar cada vez mais pela arte urbana. Foi nesse momento que conheceu o movimento hip hop.
É no movimento hip hop que o grafiteiro passa a se entender como homem negro e começa a expressar suas reivindicações e o seu orgulho.
"Eu me coloco na sociedade enquanto pessoa negra. Deixo o meu cabelo crescer, porque antes eu raspava meu cabelo, antes do graffiti, antes do hip hop, para evitar o preconceito".
“Tem uma música dos Racionais que diz que ser um preto tipo A custa caro e é um negócio que me tocou. O que é ser um preto tipo A? É o ato de você se reconhecer e se emponderar”, afirma o artista.
O desejo Nick é mobilizar outras pessoas por meio do graffiti, assim como um dia ele foi influenciado e politizado com as músicas dos Racionais MC´s. “Eu posso tocar com a minha arte, com meu graffiti, outras pessoas também, para que elas se encontrem dentro desse sistema perverso”, entende ele.
"Eu tô há 24 anos fazendo graffiti e nos últimos 10 anos eu decidi trabalhar com presonagens negros nos meus graffiti", pontua Nick. Para ele, essa é uma forma de reafirmar a própria identidade, mostrar orgulho e também gerar a identificação dos jovens nas periferias de Fortaleza.
Pinturas de jovens, de mulheres negras e de máscaras africanas ganham formas e cores nas mãos do grafiteiro. As ilustrações buscam trazer empoderamento e homenagear a ancestralidade da cultura negra.
"As pessoas olham para esse desenho e começam a fazer diversas perguntas. E eu falo esse contexto histórico de desvalorização da identidade e cultura negra e falo da importância da reconstrução dessa identidade, para o enfrentamento do racismo”.
INSPIRAÇÃO
Com os dedos sujos de tinta e o coração abarrotado de arte, Nick sentiu que deveria unir paixão e conhecimento: já graduado em Ciências Sociais, o grafiteiro retornou ao ambiente acadêmico para cursar mestrado em Artes Visuais no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará.
Apesar de ter encontrado apoio e cumplicidade em colegas que exploravam a arte urbana dentro da instituição, o artista confessa que os muros levantados pela comunidade acadêmica, quando o assunto é graffiti, ainda são altos.
“Nos outros lugares, que eu tentei mestrado também, eu senti uma resistência sobre o entendimento do que seria o graffiti, em si, dentro do espaço acadêmico. [...] Nós temos a educação, a comunicação e outros cursos debatendo o graffiti como qualquer outra coisa, mas ele em si, como arte, ainda é pouco debatido. E eu trago esse debate para dentro da academia, sobre o que é o graffiti em si, de como ele é na raiz, de como ele é produzido hoje”, explica ele.
Determinado a expandir a discussão sobre o graffiti e derrubar os estigmas que rodeiam a arte, Nick tirou do papel o projeto “Percurso do Graffiti”. A iniciativa, fruto de sua dissertação de mestrado, rompeu as barreiras do ensino superior e alcançou escolas públicas e organizações sociais de Fortaleza, apresentando os marcantes traços do graffiti para cerca de 50 crianças e adolescentes.

A experiência foi transformadora para o grafiteiro, que emocionou-se ao debater não somente arte com os jovens aprendizes, mas também pautas raciais e sociais, os ajudando a reconhecer e reivindicar seus lugares no mundo.
“É um negócio de muita satisfação poder ensinar jovens sobre essa questão da vivência do graffiti, da prática do graffiti, de colocar o graffiti na cidade, de poder se relacionar com a cidade e outras pessoas, e ‘auto se reconhecer’ ali com essa produção”, afirma Nick.
Poder dialogar com uma nova geração e passar adiante o que aprendeu ao longo de sua jornada motivaram ainda mais o artista, que, no auge de sua quarta década, não pensa em parar de criar.
“Isso me dá um gás para continuar fazendo graffiti. [...] Eu comecei no graffiti há 24 anos, aí vem um menino de 16 anos e fala ‘ah, eu não era nem nascido’, mas tá aí praticando. E é importante isso para a sobrevivência da arte urbana, né?”, diz ele.
No ano passado, Nick participou de um evento na Alemanha, onde trocou conhecimentos e vivências com grafiteiros do país europeu. Durante o “intercâmbio cultural”, o artista notou uma série de semelhanças entre o jeito brasileiro e o alemão de “fazer graffiti”, mas não pôde fechar os olhos para o diferente espaço que a arte ocupa dentro da cultura de cada nação.
A compreensão serviu como um catalisador para o artista, fortalecendo sua luta: junto à Crew Arte e Coesão, movimento formado por outros grafiteiros, Nick defende o reconhecimento da produção de graffiti, além do aumento do número de locais para a produção de arte na cidade.
"As Crews, a minha e diversas outras, têm tentado ocupar esses espaços das políticas públicas e mostrar que o graffiti tem um potencial artístico, que podemos ocupar tanto quanto o grande artista reconhecido, que pinta a tela e que vai fazer exposições em outros ambientes, que a gente pode também ocupar esses ambientes".
Colocando a mão na massa, o artista mapeou grafiteiros da capital cearense durante a realização do projeto “Percurso do Graffiti”, pretendendo transformar o material em uma espécie de catálogo. O livro, lançado em junho, deverá marcar presença nas prateleiras de escolas públicas e bibliotecas populares, o que ajudará a divulgar o trabalho desses artistas.

Enquanto a obra se espalha pela cidade, Nick sonha com o dia em que a arte urbana terá maior reconhecimento em Fortaleza. Argumentando que diversos moradores viajam para visitar o “Beco do Batman”, em São Paulo, ou, até mesmo, os painéis de graffiti em Portugal, ele reflete sobre o quão pouco contemplados são os espaços da arte na terra da luz.
“Ver as pessoas apreciando essa arte na rua, reconhecendo o artista, indo também para os espaços institucionais, a academia, para debater arte é um grande sonho, que, um dia, eu pretendo ver crianças, jovens, adultos e idosos realizando em nossa cidade, né?”, finaliza.
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